quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A Inquisição

Depois do desenvolvido trabalho que dedicámos ao Memorial do Convento, e que pode ser lido aqui, abordamos agora mais alguns temas relacionados com o romance.

A Inquisição portuguesa manteve-se activa durante cerca de três séculos e instaurou processos a algumas dezenas de milhares de pessoas. Quantas?
As respostas são variadas e vão de umas vinte e poucas mil até cerca de quarenta e cinco mil.
Mas a pergunta seguinte é: em quantos destes processos foram os respectivos réus entregues ao braço secular, para execução capital?
Também aqui os números variam, de entre uns mil e duzentos até um pouco mais que dois mil.
Poderíamos assentar em que terá havido umas 500 execuções por século, o que não estará muito longe da verdade.
Este número, ao lado do das mortes provocadas pelas ditaduras da esquerda, da nazi ou da fascista e doutras, no século XX, parece insignificante.

A Forca

Ao tempo da Inquisição, os tribunais civis concelhios também executavam condenados; faziam-no por recurso à forca. No geral, ainda é hoje possível saber onde os patíbulos se erguiam.
Como esses tribunais eram muitos (mais de 800), caso eles tivessem sentenciado em média um réu por século, o número total das suas execuções já ultrapassaria o das condenações à morte atribuíveis à Inquisição. Esta aproximação não deve errar por excesso, embora seja certo que se não conserva a maioria dos processos que levaram a essas execuções.
Há várias obras literárias que evocam mortes pela forca: Auto da Barca do Inferno, Sermão de Santo António aos Peixes, Amor de Perdição… O próprio Saramago se refere à forca numa página inicial do romance. Gomes Freire de Andrade, o antigo mercenário das guerras de Napoleão e Catarina da Rússia, que Sttau Monteiro fez protagonista de Felizmente Há Luar!, morreu na forca.
Pode-se assim concluir que a execução capital foi bastante comum no nosso país.
E era também assim pela Europa fora, como já o fora na antiguidade clássica, onde são conhecidos casos de chacinas inauditas.
O facto de não haver nesses tempos um sistema prisional capaz explica também o recurso frequente à pena de morte.
Durante a Revolução Francesa, só os guilhotinados foram 2.794.
Mas o genocídio nunca alcançou tão larga escala como no século XX.

Na imagem: Padrão medieval da Lenda do Galo de Barcelos.

sábado, 13 de novembro de 2010

Condenações à morte sob o Marquês de Pombal

Como não é possível contabilizar hoje os mortos pela forca, também não é possível contabilizar as mortes provocadas pelo Marquês de Pombal.
Vejam-se todavia estes números transcritos da História Concisa de Portugal de Hermano José Saraiva (pág. 245):

Quando Pombal abandonou o poder foram libertados oitocentos presos políticos, mas o número dos que entretanto tinham morrido nos cárceres atingia os dois mil e quatrocentos.

Isto já dá uma média de oitocentas mortes por década, o que é um número maior do que o dos mortos da Inquisição por século...
E os executados no processo dos Távoras? E os dos casos como o do P.e Malagrida? E muitos outros que se sabe que ocorreram?
Em 1757, foram enforcadas no Porto "três dezenas de populares" que se tinham revoltado contra a tirania do Marquês (História Concisa de Portugal, página 247).
Porque não escreveu Saramago, no seu severo juízo da história, sobre o tirano Marquês de Pombal? Ele era mais sádico do que os inquisidores...

O “Memorial do Convento”

Sobre a Inquisição, convém também dizer que, visto que ela organizava processos, podemos hoje saber quem foi morto e as razões da sua condenação [1]. Creio que isso não se passa com o Marquês nem com os mortos das ditaduras do séc. XX.
Se da Inquisição não houvesse processos, que saberíamos dela? E das suas vítimas?

Do que parece não haver dúvida é que o autor do Memorial do Convento, por preconceito, agrava as culpas da Inquisição tanto quanto isso lhe parece viável. Mas em muitos casos não convence: ele descontextualiza quase completamente a instituição e as suas práticas e por vezes não hesita em colorir o que descreve, mesmo contra o dado histórico.
Verdadeiramente as lágrimas que chora sobre os mortos dos autos-de-fé são lágrimas de crocodilo, se não quisermos ser mais decididos e afirmar que ele age de má-fé.
O romance parece ter sido escrito mais para iletrados e preguiçosos.


[1] Também convém dizer que desde a sua instituição não houve mais nada que nem de longe se assemelhasse à matança popular de judeus, de 1506, durante a qual em três dias foram mortos lá para dois mil, certamente à paulada e à pedrada.

Síntese crítica sobre "Memorial do Convento"


Afirmar a verdade no rosto da mentira

A acção do romance histórico de José Saramago Memorial do Convento decorre durante o reinado de D. João V. A intenção do autor parece ser a de submeter a Igreja ao julgamento do seu sarcasmo continuado e do seu ateísmo. Para atingir o seu objectivo, vale quase tudo.
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O título do romance

O título dado ao romance não parece muito ajustado.
Primeiro, porque o autor não cumpre o que nele promete: o romance não é nem de longe o memorial do mais grandioso monumento barroco português, um monumento que faria o orgulho de qualquer grande e desenvolvido país, e que os especialistas da arte sobremaneira valorizam. Só quem não conheça Mafra pode discordar disto.
Segundo, porque ao longo do romance cruzam-se várias estórias, chegando a do P.e Bartolomeu e da sua fantasiosa Passarola ou do par Baltazar e Blimunda a rivalizar em importância e extensão com a dos momentos dedicados ao convento.
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A história do Convento

Na história da construção do Convento de Mafra – e é essa que se promete – há factos que se não adequavam ao objectivo do autor e que por isso ele deixa de lado. Todavia memorial é memorial.
Um desses é a resistência dos arrábidos em se defenderem de uma construção que ficava fora das normas de seu rigor monástico. Isto é histórico: eles reagiram tanto quanto lhes foi possível. E este facto denuncia por si um certo jeito de insinuar que as ordens religiosas atravessavam então um momento de grande relaxamento. Não era assim. Uma andorinha, ou meia dúzia que sejam, não faz a Primavera. Os tempos do P.e António Vieira e do P.e Manuel Bernardes não estavam tão longe.
Outro é que o convento foi originalmente concebido para treze frades, isto é, como um pequeno cenóbio. A megalomania atribuída ao rei não faz tanto sentido.
Segundo muito boa gente, D. João V, com a construção do Convento de Mafra, pretendeu valorizar internacionalmente a imagem de Portugal. Não era um objectivo a desprezar para um país tão geográfica e culturalmente periférico, e o objectivo foi conseguido.
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Personagens

.D. João V e D. Maria Ana de Áustria

Por mais que D. João V seja uma personagem conveniente para os escritores de esquerda, vale mais que a deles a opinião dos historiadores profissionais, que o chegam a declarar um dos maiores reis da nossa história.
Quanto à sua desregrada vida amorosa, que lição terão esses autores a dar-lhe? Mas, do ponto de vista histórico, ela não o impediu de governar. Distingamos pois o que é pessoal do que é actuação de governante.
A rainha era uma mulher culta e piedosa, pasto pois privilegiado também para o impiedoso sarcasmo de Saramago. Mas ela vinha duma das cortes mais cultas e ricas do mundo!.. Como se pôde reduzi-la a uma mera fêmea reprodutora? Ela não teria coração como as outras mulheres? Ela não sofreu com as infidelidades do marido? Achincalhá-la como vem no romance não será da mais baixa indelicadeza?
Sobre o “milagre” de D. Maria Ana engravidar, que justificou a construção do convento, era difícil chamar-lhe outra coisa: durante dois anos não engravidara, depois engravidou vezes sucessivas.

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D. Mariana de Bragança

A princesa D. Mariana de Bragança foi uma jovem culta e depois uma rainha bem sucedida. Não teria também direito a um tratamento diferente, mais condigno com as qualidades da sua pessoa?
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Baltazar e Blimunda

Baltazar é um apêndice de Blimunda, um pau-mandado: não faz nada de original.
Blimunda por seu lado é uma figura desligada do real pelos poderes mágicos. Mágicos é que é a palavra certa. Os seus poderes são como os da lâmpada de Aladino, não existem in rerum natura.
Afora essa gratuita originalidade, é uma mulher bastante comum: inteligente como muitas, dedicada ao homem que acompanha como muitas, persistente como muitas.
Não é fácil conciliar a sua irreligiosidade com a história. Claro que ela, como o par em si, como o desconvertido P.e Bartolomeu convêm muito aos planos do autor. E como ele escreve, “era uma vez”.
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P.e Bartolomeu de Gusmão

Parece-me tão aceitável fazer do P.e Bartolomeu histórico o P.e Bartolomeu do romance como criar uma narrativa onde se colocasse a figura de Salazar como um campeão da vida em democracia. Estamos no campo da transformação gratuita da realidade histórica. “Era uma vez”.
O P.e Bartolomeu histórico foi um homem sobredotado e um sacerdote exemplar, o de Saramago descreu do cristianismo e aproximou-se do judaísmo e do islamismo, duma concepção invertebrada da religião, onde tudo é uma construção subjectiva.
Na biografia do P.e Bartolomeu, a passarola não passou de um estratagema ocasional para afastar indiscretos, no romance serve para Saramago dar largas à sua blasfémia e ao seu sonho ateu.
P.e Bartolomeu de Gusmão ou P.e Bartolomeu de Saramago?
Às vezes os leitores do Memorial do Convento, raciocinando sobre o P.e Bartolomeu de Saramago, tiram conclusões a respeito do P.e Bartolomeu de Gusmão. Coisa absurda.
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Da Inquisição ao KGB

Saramago encontrou na Inquisição um dos ingredientes para o seu ataque à Igreja - coisa antiga. Como é capaz de tal coisa quem apoiou o regime soviético e outros semelhantes, cada um com o seu KGB em pleno séc. XX? Que desproporção entre as mortes duma e de outros! Esta gente não aprendeu nada com o passado!
Quem lê o romance encontra a Inquisição a cada passo. Sempre terrível. Mas as vítimas mortais atribuíveis à Inquisição foram cerca de 1500 em três séculos. E as do KGB? Que má consciência!
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Deus e a blasfémia

O P.e Bartolomeu de Saramago é repetidamente blasfemo. Melhor, Saramago coloca-lhe na boca repetidas blasfémias. Chega a assumir-se, mais a Blimunda e Baltasar, como a Trindade. Isto é o absurdo mais desalmado. Se para o escritor Deus não existe, isso não lhe basta?
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A questão da pontuação

A questão da pontuação no romance não tem qualquer alcance especificamente literário. Parece mais uma birra de adolescente que teima na sua originalidade, mesmo que ela perturbe seriamente o entendimento do texto.